Há mais para nos unir do que desunir...

"Também o Espírito, semelhantemente, nos assiste em nossa fraqueza; porque não sabemos orar como convém, mas o mesmo Espírito intercede por nós sobremaneira com gemidos inexprimíveis. E aquele que sonda os corações sabe qual é a mente do Espírito, porque segundo a vontade de Deus é que ele intercede pelos santos."
(Em 8.26,27.]

Quando nem tudo vai bem, sinal que é tempo de parar e colocar a casa em ordem.
Quando decidi por aceitar o pedido de casamento de meu então namorado, decidi também fazer acordos com ele. Investimos algum tempo falando sobre nossos planos, projetos e como iríamos colocar em prática, afinal, era preciso que falássemos uma mesma linguagem. Para nós isso não foi difícil, até por nossa experiência de vida já ser um tanto "experiente", para ser redundante.
Lembro-me de, um dia, em meio às decisões, tomarmos os acordos como uma espécie de contrato nupcial, e até hoje trazemos à memória os itens que às vezes inventamos de última hora: "Ah, você não lembra lá do contrato? Estava em letras minúsculas, mas estava lá, bem descrito"! Claro que sempre rimos, até porque, por vezes, inventamos cada coisa para arrumar umas desculpas esfarrapadas! Ma nada que uma boa amizade não resolva.
Nosso contrato diz que, em primeiro lugar, devemos nos respeitar; depois vem outras coisas. Mas o respeito, descobrimos ser algo tão importante, ao ponto de suportar o amor. Quando um vira pro outro e diz palavras pejorativas aos gritos, realmente o casamento está em crise. Pode ser o fim de um acordo não assistido, muito menos não praticado.
Há tempos também tenho observado que em um casamento é preciso sempre alguém abrir mão de tudo e um pouco mais. Já entendo que nem sempre é o quero, mas sei que preciso, sei que é necessário. Porém, cada vez que isso acontece, algo maior é provocado em nossos corações. Sempre temos a certeza de que nosso amor está sendo contruído por pontes e não abismos. Quando há um desconforto, é hora de rever o tal "contrato" e por a casa em ordem. Mas, e quando acordos não foram criados, pensados antes do casamento?
Quando nossa relação não se baseia em princípios salutares e centrado em Cristo, pode ser um passo para o fracasso. Se não somos nós tratados e libertos de medos, dos pecados, das maldições, se não temos nossa alma consertada, provavelmente levaremos isso para nossa união. Será um contrato de sangue que sucumbirá ao primeiro impacto de dificuldade. Não hã condição de se manter uma união estável quando não se sabe como agir. Nesse caso, padrinhos seriam extremamente úteis, até porque, na história do casamento, os padrinhos teriam essa função. Porém, hoje, o que mais se vê são pessoas que mal se conhece para assumir a condição que deveria ser de extrema importância para auxiliar um casal em momento de crise na relação. Mas e quando já tomaram a decisão de se separarem?
Sempre penso que o amor subsiste a muita coisa, mas um coração ferido pode se endurecer de tal maneira que não terá condição de tentar mais uma vez. Isso porque em uma separação muito é dito contra o outro. Palavras pesadas são lançadas aos mais próximos. As pessoas que deveriam ajudar, fazem para atrapalhar mais e mais trazendo e levando recadinhos enfadonhos, maldosos, falsosos. São tantas mentiras que, quando alguém tenta ajudar, já foi estragada a única oportunidade que haveria de se reatar. Porém, nem tudo está perdido!
Perdoar é algo tão pesado, tão difícil... Perdoar vai além de nossa natureza, nossa força. Somos sempre levados a querer nos justificar exigindo que o outro se arrependa em nosso lugar. Nos achamos vítimas, sempre. Parece ser vergonhoso se humilhar, assumir as fraquezas, falhas. Isso soma para um relacionamento chegar ao fim. Porém, quando nos entregamos de vez assumindo nossos erros, um milagre acontece. Aquilo que temos condição e devemos fazer, Deus não moverá uma palha, porque cabe a nós tomarmos posição. Aquilo que não há condição de fazermos, vai além de nossas forças, Deus agirá e provocará o grande milagre.
Sempre é tempo de pedir perdão, de buscar reconciliação. O dia de hoje é o melhor e pode ser que o dia de amanhã não chegue. Se isso acontecer, alguém viverá escorado em um barranco pelo resto de tempo que lhes resta.
Busque ajuda. Busque ao Senhor enquanto há tempo. Peça perdão. Perdoe. Disponha-se. Um grande milagre poderá acontecer.
Lembre-se: sempre há mais para unir do que desunir.

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Eu escolhi o perdão

Eu escolhi o perdão...
Depois de tanto tempo, tantos anos, tantas frustrações, soube que o tempo de escolha para o perdão havia chegado.
Não foi fácil sentir as lágrimas descerem dos meus olhos ou pronunciar aquelas palavras tão intensas. Mas fiz! Escolhi perdoar.
Cansei de carregar defuntos sobre minhas costas.
Quero carregar vidas!
Escolhi perdoar.
Escolhi viver.

Por Edilaine M. Vidotto Rech

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Eu? Vestir-me de pano de saco?

“Ó Deus, as águas me sobem até o pescoço;
afundo na lama; não tenho apoio para os pés.”

                 Há algum tempo tenho pensado a respeito da humilhação. Penso, algumas vezes, a partir de uma visão cristocêntrica, profética e também eclesial. Confesso que me preocupo! Não sei  se mais comigo ou “contigos”!
                No passado distante, no antigo testamento bíblico, um sinal evidente à prática da humilhação era a exposição através do uso do pano de saco - um tecido grosso, feito geralmente de pelo de cabra. Ao usá-lo, o humilhado demonstrava aflição, tristeza e arrependimento. Era um sinal de lamentação por conta da morte e ou calamidades. Um exemplo disso é Jacó que, ao saber da falsa morte de seu filho José, “rasgou as suas vestes e se cingiu de pano de saco, e lamentou o filho por muitos dias“. Já o profeta Daniel, evidenciando sua súplica em oração, disse: “voltei o rosto ao Senhor Deus, para o buscar com oração e súplicas, com jejum, pano de saco e cinza”. Há também demonstração de arrependimento em massa pelos filhos de Israel depois do cativeiro babilônico quando, trouxeram terra sobre si e se vestiram de pano de saco a fim de confessar seus pecados diante do Senhor.

                Quem dera isso fosse praticado em tempos hodiernos!
                Se antigamente a humilhação, a confissão, o arrependimento era demonstrado com atitude de se dispor da vergonha, o que se vê hoje é um circo de horrores. Não se confronta mais o pecado como deveria. Não se faz mais uso, quase nem mesmo do perdão para o arrependimento. Claro que na aliança de Cristo não há evidências de uso de quaisquer coisa que seja para externar a humilhação. Essa prática, aliás, também foi condenada por ser usada como atos externos “insinceros”. A grande mudança ocorre em nosso comportamento quando somos transformados pela palavra do Cristo vivo!

                Em gabinetes pastorais, quantos tratamentos de adultérios têm sido feito de maneira quase intimista. Reúnem-se os líderes, o casal  ou somente o adúltero, adúltera, e ali, entre as quatro paredes é confessado e perdoado. Logo tudo parece estar normal. Mas eu me pergunto sempre se, realmente, a todos quanto interessa, o problema é confrontado. Quantos adúlteros que, arrependidos dos seus atos, se humilham perante os pais, os filhos, irmãos, igreja, e pedem perdão? Mas você deve se perguntar: mas é preciso? Não é somente ao traído, traída suficiente se arrepender?
                Tratar sobre pecados é algo bem delicado, principalmente quando essa prática fere ao próximo. Quando meus pecados invadem o espaço do outro que é do meu círculo, provavelmente ele causará danos. Um vínculo foi quebrado. Agora a confiança foi tocada! Quando alguém adultera numa relação matrimonial, a família também sofre. Os filhos são expostos, os parentes não sabem como agir. Se isso acontecer em um seio que não conhece o cristianismo atuante como apaziguador, pior será. No entanto, se isso acontece em um lar onde todos professam a mesma fé do evangelho de Cristo, sentir-se arrependido não é suficiente. É preciso ir além. É preciso confrontar a questão de maneira que todos ao redor possam experimentar o mesmo sentimento. É preciso que todos possam exteriorizar o que há dentro de si. É preciso que as lágrimas lavem os corações.

                Talvez, hoje, devêssemos nos vestir de pano de saco e nos cingirmos de cinza. Talvez devêssemos sair às ruas gritando o quanto nosso caráter é ruim. Talvez precisemos nos livrar da vergonha de ter vergonha! Talvez devêssemos parar de sermos hipócritas e realmente acertamos nossas contas, ainda que, aparentemente tarde.
                Quando há arrependimento, há perdão. Quando há perdão, há sinceridade. Quando há sinceridade, não se vive às escuras. Quando se está às claras, tudo é evidente, inclusive, o verdadeiro amor. 
Realmente preciso me vestir de pano de saco.

              

                Por Edilaine M. Vidotto Rech

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De pinguço a profeta...

Dentro do ônibus, que mais parecia um pau-de-arara disfarçado, a poeira era tão intensa quanto do lado de fora. Meninos eufóricos corriam de um lado para o outro, misturando seus gritos ao barulho das galinhas amarradas debaixo dos bancos. Era uma segunda-feira de muito sol, e pouco a pouco a vegetação litorânea ia cedendo à caatinga do sertão da Bahia, castigado pela seca. O que deveria ser uma viagem de duas horas era feita em cinco, primeiro porque a estrada era um caminho sulcado no barro, e segundo porque o motorista fazia questão de parar na frente de qualquer “cancela”. Sempre havia uma pessoa esperando para mandar uma encomenda ou para dar um presente ao motorista. O clima de camaradagem entre os moradores e o motorista era tanto que ele até convidava pessoas para embarcar: “Fulano, você não vai não? Vamos rapaz! Eu te espero!”. E realmente esperava até quinze ou vinte minutos enquanto a pessoa tomava banho, arrumava a sacola e ate trazia um lanchinho pra ele. Eu achava tudo extremamente engraçado, e novo.

Meu coração estava cheio de expectativas. Seria a minha primeira experiência de tempo integral em Missões e eu havia esperado toda a minha vida por isto - que não era nem tão longa, porque eu só tinha 18 anos. Outro fato que me deixava profundamente empolgado era que estava indo para implantar uma igreja num lugar ainda não alcançado. Tinha a impressão de que iria me tornar o maior evangelista de todos os tempos!

Uma placa apareceu no horizonte com a inscrição “Bem vindo a Cabaceiras do Paraguaçu”. A cidade surgiu logo atrás da placa, às margens de uma avenida principal sangrada por uma praça com uma igreja católica. Mais quatro ruas transversais cortavam a cidade, se dividiam mais adiante, e era só. O ônibus parou na praça em frente à igreja católica, e aos poucos fui saindo da nuvem de poeira amarela que pairou sobre o ônibus. Logo à esquerda avistei alguns rostos conhecidos: Nini, Roger, Ednaldo e Marluce. Eles faziam parte da mesma igreja onde eu congregava, todos estavam ali pelo mesmo motivo. Caminhei em direção a eles e percebi um pouco a direita um enorme e colorido toldo circense, mas não era um circo. Dezenas de meninos corriam em volta e faziam a maior algazarra, pela novidade que invadira a cidade. A Igreja do “circo dos crentes”. A “tenda” como nós chamávamos era um enorme toldo de circo. Pertencia a um pastor americano chamado Brant. Ele era o diretor da Cruzada Evangelística Uma Nova Esperança, que estava acabando de iniciar suas atividades no Brasil. A tenda era realmente impressionante e muito bonita. Ela conseguia atrair centenas de pessoas, adultos e crianças, que vinham de longe para ver a novidade e ouviar o evangelho em nossos cultos diários.  Eles me levaram a uma pequena casa metros atrás, onde encontrei Bel e Aurino, que vieram de uma congregação da nossa Igreja, Eliane e Junior, que era o filho do pastor, e mais alguns voluntários que ficariam apenas o fim de semana. Depois de alguns minutos de conversa, saímos para ver a tenda e olhar um pouco a cidade. Escondida atrás da tenda encontramos uma pequena igreja de outra denominação muito conhecida no Brasil.

 _ Então não somos os primeiros evangélicos a chegar aqui…!

 E aquela outra igreja já estava lá há quase 40 anos, alguém me contou. Havia algumas pessoas na porta observando a tenda, nos aproximamos, mas eles se afastaram… parece que não queriam conversa…

 O primeiro culto foi maravilhoso. Parecia que a cidade inteira estava lá (...).

 Quinta-feira à noite seria o primeiro culto na nossa nova congregação. Durante todos os dias da semana, trabalhamos pesado nas reformas do pequeno quartinho. Era um boteco recém-falido, bem apertadinho, com telhado de palha e paredes de taipa, porém rebocadas. Pintamos as paredes, e valendo-me de minha vocação para “McGyver” fiz alguns concertos na parte elétrica, instalando lâmpadas em lugar dos velhos candeeiros. Colocamos banquinhos e uma outra igreja da região doou um púlpito. Devia haver espaço para uns cinco bancos, talvez. No final da tarde o ex-boteco já tinha um aspecto de igreja evangélica, e eu estava empolgadíssimo, depois de todo o trabalho das semanas anteriores, tinha a impressão de que aquela seria a grande noite. Senti Deus me direcionando a preparar um sermão evangelístico para aquele primeiro momento ali. Eu era um adolescente que esperava se tornar o Billy Graham do nordeste, e naquela noite pensava que haveria pelo menos três mil conversões. Mas como num povoado de 1000 pessoas podem ocorrer 3000 conversões? Claro que na época, eu sequer me importava com estes detalhes operacionais.

Às 19h entrei na congregação triunfante. Estava muito seguro de que aquela noite seria muito especial. Mas em vez de 3000 pessoas como eu presumia, havia quatro missionários, cinco crianças que participaram conosco da EBF na semana anterior, e um adulto sentado no último banco. Respirei fundo, e como quem diz “o importante é a qualidade e não a quantidade” me aproximei do rapaz no último banco. 

 _ Como vai você? - perguntei.

_ Eu fou muitof bem! - respondeu ele, completamente embriagado.

“Ainda bem que retiramos os candeeiros, porque este cara perto do fogo é incêndio na certa…” pensei exageradamente. Talvez ele tivesse vindo pra tomar uma pinga no boteco, gostou da nova “decoração” e acabou ficando. Voltei para o meu lugar e fiquei pensando: “Meu Deus, o que eu vou dizer aqui?”. Olhei para o sermão que eu havia preparado e de repente parecia que a igreja era imensa…

Quando o louvor terminou, passaram a palavra pra mim e fui para o púlpito sentindo-me desolado. Contudo preguei. Incredulamente, mas preguei. Na minha cabeça eu não entendia direito o que estava acontecendo. Sabia que Deus havia me direcionado a pregar sobre aquele tema. Mas as crianças que estavam ali, eu mesmo já havia evangelizado e todas elas haviam aceitado a Jesus. Os meus companheiros na igreja estavam no mesmo barco que eu. Sim, ainda havia o bêbado… mas pregar pra bêbado você sabe como é… eu sempre achei que fosse total perda de tempo. Pois bem, preguei. Quando estava no final senti que deveria perguntar se alguém gostaria de entregar o coração para Jesus… fiquei meio relutante, mas, perguntei.

No fundo da congregação alguém levantou a mão. Era exatamente ele, o rapaz embriagado. Empolguei-me de súbito e o chamei à frente. Ele se levantou olhou firme pra frente e veio trocando as pernas fazendo um zigue-zague no corredor.

 _ Qual e o seu nome? perguntei.

_ Osmar - respondeu ele.

_ Osmar, você deseja mudar de vida?

_ Quero sim. - respondeu ele mais uma vez?

_ Você quer deixar Jesus mudar o seu coração e recebê-lo como Salvador?

_ Sim.

Chamei mais alguns dos meus colegas na congregação e oramos pelo Osmar. Orei pela sua libertação, pela sua vida, pela sua família, para que ele abandonasse o vicio… Ele também orou entregando a sua vida a Jesus, e pedindo que Ele viesse morar e reinar no seu coração.

Quando encerramos o culto conversamos alguns minutos com o Osmar. Ele disse onde era a sua casa e tentou falar um pouco sobre ele… mas embriagado não foi muito fácil entendê-lo.

 _ Você bebe há muito tempo, Osmar?

_ Ah, Dexde menino, irmão. Maix não bebo muito, não. Xo assim de vex em quando pra clarear as idéias.

_ Mas isto faz mal, Osmar. Você precisa parar antes que tenha alguma complicação maior.

_ Xim, Xim, não xe preocupe, que hoxe foi o último dia. Depois de hoxe, nunca maix.

Saiu da igreja se despedindo repetidamente de nós. Ele tinha uma bicicleta, uma barra circular cheia de badulaques pendurados, farol, lanterninhas o escudo do Esporte Clube Bahia no pára-lama, parecia um trio elétrico. E ele foi empurrando ela pra casa, porque realmente não dava pra ir pedalando. Nini se aproximou de mim e disse:

_ Será?

_ Sei não. Espero que sim - respondi.

 O próximo culto seria no sábado à noite. Planejamos um culto de louvor. O Ednaldo iria encerrar com uma palavra de reflexão. Quando cheguei na igreja percebi um rapaz, de costas, sentado no último banco da igreja. Era o Osmar. Aproximei-me dele, coloquei a mão no seu ombro e o cumprimentei com quem cumprimenta um velho amigo.

 _Tchudo bem irmão! - respondeu ele, com aquele sotaque característico de quem andou nadando num mar de cachaça.

 Respirei fundo, e sentei-me pesadamente no banco.

O culto seguiu normalmente, e foi realmente muito restaurador para mim. A Igreja estava cheia de visitantes, alguns das outras duas igrejas da cidade e algumas famílias que convidamos. Apos os cânticos, o Ednaldo fez uma rápida reflexão sobre Jesus e perguntou se havia alguém que gostaria de receber a Jesus como Salvador. Uma família inteira se converteu.  Fomos orar por eles e enquanto orávamos, percebi alguém mais se aproximando. Era o Osmar. Ele disse:

 _Irmão, ora por mim porque eu quero rexeber a Xesus como Xalvador.

 É claro que oramos por ele, mais fervorosamente, até! Quando terminamos o culto conversamos mais um pouco. Eu até já estava entendendo o que ele falava com facilidade, mais um pouco e iria tornar-me intérprete! Repeti os conselhos do dia anterior, e ele mais uma vez afirmou:

_Xim, Xim, não xe preocupe, que hoxe foi o último dia. Depois de hoxe, nunca maix.

 No dia seguinte um evangelista da região estaria conosco em nosso culto da noite. Convidamos muitas famílias e colocamos alguns bancos extras do lado de fora da congregação.  Um grupo musical de outra cidade veio ajudar no louvor, o que foi muito bom. A noite a igreja estava cheia de visitantes. O Evangelista pregou a lá Jimmi Swegart. Gritava, pulava, gesticulava. Na hora do apelo estávamos todos orando enquanto ele dizia:

 _Quem vai ser a primeira pessoa a dizer: SIM! Eu quero receber a Jesus!?

Continuávamos todos orando. De repente ele disse:

 _Deus te abençoe. Venha aqui à frente, eu quero orar por você!

 Olhei pra trás para ver quem era. E era ele mesmo. O Osmar. Com a mão levantada caminhando em direção à frente da igreja. Pensei: “Bom, talvez ele esteja sóbrio agora à noite…” O Evangelista perguntou:

 _Você deseja receber a Jesus?

Osmar respondeu:

_Xim…

 “Não, ele não está, não…” pensei enquanto percebi que toda a equipe estava olhando pra mim. O Evangelista convidou toda a equipe para orar por ele. E lá fomos nós novamente orar pelo Osmar. Não posso negar que orei com uma certa sensação de “dejavu”… Quando terminamos o culto o Evangelista estava conversando com o Osmar e enquanto me aproximava, Ele disse pra mim:

 _ Agora este rapaz e uma nova criatura! E vocês precisam acompanhá-lo e ajudá-lo nesta nova caminhada.

 Eu sorri e abracei o Osmar. Nem quis contar pra o Evangelista que o Osmar já era um freqüentador de nossos cultos, pra não estragar a alegria dele.

Contudo, depois daquele culto, o Osmar se tornou um dos mais assíduos, e não apenas isto. Ele simplesmente tinha de se “converter” em cada culto. Apesar de todas as nossas conversas com ele, se havia um apelo, lá estava ele. Não perdia uma. Ele também aprendeu a visitar a nossa casa. Todos os dias ele aparecia lá. O mais interessante é que eu já estava na cidade há meses e nunca havia visto o Osmar sóbrio. Ele estava sempre empurrando a bicicleta para todos os lados.

Em uma destas visitas à nossa casa, sentei-me com ele no corredor e ficamos conversando. Tinha a impressão de que ele gostava de conversar comigo, talvez porque eu o ouvisse, ou quem sabe porque ele me achasse com cara de bebum também. De qualquer forma, ouvi-lo era uma arte. Ele mudava de assunto num piscar de olhos. Um dia ele me perguntou:

 _ Irmão, Xesus é bom, não é?

_ É sim, Osmar - Respondi.

_ E o Diabo não vale nada, não é?

_ Exatamente Osmar - Respondi mais uma vez.

_ Então deixa repetir pra ver se entendi direito. O diabo é bom, e Xesus não vale nada… é isso?

 Eu ia respondendo, mas percebi que um monte de cabecinhas surgiu nas portas dos quartos pelo corredor. Outros que estavam na cozinha começaram a se aproximar. Um veio andando da cozinha e disparou de lá mesmo “Tá amarrado em nome de Jesus!". De repente todos estavam ao nosso redor e começaram a orar. Eu me levantei e alguém colocou a mão sobre a cabeça do Osmar, que permaneceu sentado. Eu estava orando e observando. Eu tinha 18 anos naquela época, e até então nunca havia visto uma pessoa possessa por um espírito imundo. Enquanto oravam por ele, o Osmar bambeava como joão-sem-braço, ia pra um lado e depois pro outro. De repente alguém perguntou:

_Qual é o seu nome?

 Não houve resposta.

 _Qual é o seu nome? Diga seu nome em nome de Jesus!

 Osmar levantou a cabeça, olhou pra todo mundo e disse:

_Osmar. Não é não, irmão? Falou olhando pra mim.

 Eu cocei a cabeça me aproximei, peguei-o pelo braço e disse:

 _E Osmar, é isto mesmo. Vamos dar uma volta. - e sai o puxando pelo braço porta afora…

 Do lado de fora, não consegui me conter, porque a situação não deixava de ser engraçada. Mas virei-me pro Osmar e disse:

_Osmar, isto vai acabar matando você. A cachaça está matando você aos poucos. Se você não fizer alguma coisa, você vai acabar morrendo muito breve. Você não gostaria de ir pra um centro de recuperação e passar um tempo lá, pra se curar disto não?

Ele parou um pouco, baixou a cabeça e respondeu:

_Eu não xei, irmão… eu vou ver…

Nosso trabalho continuou na cidade. A congregação crescia e sempre realizávamos atividades com as crianças e estudos bíblicos para as famílias. E o Osmar continuava lá do mesmo jeito. Ia à congregação, visitava a nossa casa. Tudo da mesma forma. Foram tantas às vezes que oramos por ele, mas aparentemente tudo estava como antes…

 Meses depois tive de sair da cidade. Passei a integrar um grupo musical chamado Alfa, que viajava pelo estado cantando em igrejas e congressos. E durante estas viagens passei alguns meses sem poder retornar à cidade. Contudo, sempre recebia noticias de como o trabalho estava indo através dos meus companheiros lá. Um dia me contaram que finalmente o Osmar havia se decidido a ir para um centro de recuperação para dependentes alcoólicos em Feira de Santana. “Que bom!”, pensei.

 Aproximadamente seis meses depois retornei à cidade durante uma folga que me apareceu entre uma viajem e outra. Não avisei a ninguém que ia chegar, até mesmo porque decidi de última hora. Quando cheguei era quase hora do culto e quase todo mundo havia saído. Fui para a congregação e de longe percebi que havia mais bancos do lado de fora, mas ainda era cedo para o culto. Quando entrei no recinto percebi uma figura conhecida sentada num dos últimos bancos da parte de dentro. Era o Osmar. Aproximei-me dele e coloquei a minha mão nos eu ombro.

_ Como vai, Osmar?  Perguntei.

_ A Paz do Senhor, irmão! - respondeu ele com um sorriso, levantando-se e apertando a minha mão fortemente.

 Eu quase dei um piripaque… ele estava sóbrio. Durante todo meu tempo na cidade nunca tinha ouvido sua voz claramente, apenas com aquele sotaque de “cana”. E eu fiquei ali parado com aquela cara de bobo olhando pra ele sem saber o que dizer…

 _Jesus e bom, não é? Foi a única coisa que saiu da minha boca.

_É sim. O diabo é que não vale nada… - ele respondeu sorrindo e me abraçou.

 Depois de colocarmos a conversa em dia, quando ele me contou um pouco de como havia sido seu período de recuperação no centro, ele me apresentou o seu irmão, que era praticamente a sua fotocópia. Depois ele se afastou um pouco para fazer alguma coisa, e os meus colegas da equipe chegaram e começaram a me contar os detalhes da historia.

Osmar passou três meses no centro de recupareração e retornou completamente transformado, falando de Jesus e de como Ele havia mudado a sua vida. Quando ouviram isto e viram as mudanças em sua vida seus irmãos aceitaram a Jesus. Sua mãe foi a seguinte a perceber que deveria mesmo haver algo diferente neste Jesus de que seu filho falava. Seus vizinhos ouviram e perceberam que se Jesus havia mudado a vida do Osmar, ele podia mudar a vida deles também! E de repente, aquele homem que antes era o motivo de chacota da cidadezinha havia se tornado um profeta. Sua mensagem não era nenhum sermão recheado de explanações bíblicas de como o evangelho redime a lama pecadora o homem. Ele apenas dizia: “Vocês sabem quem eu era. Olhem pra mim agora, e vejam o que Jesus fez comigo! Ele pode mudar a sua vida também!” Muitos, muitos aceitaram a Jesus através do testemunho daquele homem. E todos estavam lá no culto, adorando ao Jesus que haviam conhecido através do Osmar. Quando acabou o culto conversamos mais um pouco, rimos bastante, e depois ele se despediu. Pegou sua bicicleta, montou nela e foi pedalando pra casa… acho que foi a primeira vez que o vi fazendo isto. Algum tempo depois disto ele vendeu a bicicleta e comprou uma moto, mas nem cheguei a vê-la porque tinha de ir embora.

 Quando terminei a visita retornei as minhas atividades com o Alfa. Tempos depois retornei a uma cidade vizinha onde encontrei com alguns amigos. Pedi noticias de como estavam todos na cidadezinha, como ia a Igreja… Eles me disseram que todos iam bem.

 _ E o Osmar? Perguntei?

_ O Osmar… você não sabe? - perguntaram-me

_ Não sabe o quê? -respondi acenando negativamente com a cabeça.

_ Bom, o Osmar estava indo para uma outra cidade de moto há alguns meses atrás, à noite. Ele bateu de frente com um ônibus… morreu na hora…

Mais uma vez fiquei parado sem resposta ou sequer um comentário. Um silêncio profundo tomou conta de mim e apenas ouvia.

_ Mas sabe de uma coisa, - continuou - no dia do culto fúnebre, estavam todos lá. Seus irmãos e irmãs, sua mãe, amigos e tantos outros que vieram a Jesus através do seu testemunho. Todos estavam tristes. Mas todos estavam certos de reencontrar o Osmar, diante do Trono do Cordeiro!
Por: Adriano - JOCUM (Fortaleza)

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O que eu aprendo com o "carinha que mora logo ali"!

Acho de uma criatividade tão grande e feliz a série Todo Mundo Odeia o Chris que não me canso de assisti-la, ainda que repetidas vezes o mesmo episódio.
Chris é um adolescente que vive com os pais, um irmão e uma irmã no bairro de Bed-Stuy no Brooklyn em Nova York.
Na série, a história gira em torno do personagem Chris Rock.Ele tem momentos de alegrias e decepções, mas aceita sua condição e realidade. O adolescente é apresentado como infeliz e azarado, o único negro na escola onde estuda e o filho mais velho do casal Julius e Rochelle. Seu sonho é ser bonito, popular, talentoso, mas não consegue realizar o que deseja. Normalmente se dá mal nos episódios e aparentemente é sempre injustiçado. Tem uma irmã que quer literalmente queimá-lo vivo e um irmão que tem a atenção voltada para sua beleza, inteligência e destreza no que faz. Seu amigo Greg é o pior e melhor do dia-a-dia. O ajuda a sair e entrar em encrencas, mas foge quando o calo aperta e o deixa na mão. Sempre volta arrependido e Chris o perdoa.
Chris, como todo mundo, tem um inimigo, o Caruso. É a pedra no caminho da sua vida. É racista, mal-educado, briguento, falso e dissimulado, e está sempre acompanhado de outros garotos, com os quais dá surras diárias em seus desafetos.
Nem todo mundo odeia o Chris, nem todo mundo quer arrancar sua pele, mas o que se pode aprender de sua realidade é realmente maravilhoso. O que o cerca é a realidade mais clara e sincera que pode ser compreendida.
O que mais me chama a atenção na série é o desenrolar no seio familiar. Os problemas, ainda que grandes, são confrontados e resolvidos, mesmo que alguém tenha que gritar mais alto. Não se tolera a mentira, a falsidade, o engano, e em algum momento haverá o acerto de contas. Gosto da maneira como os personagens são forçados a resolverem suas crises, revelarem suas mentiras. Gosto de ver a mesa como o centro da convivência diária e onde, normalmente, as coisas relevantes são apresentadas. Gosto de ver como os pecados, as fraquezas, os desejos maquinados vem à tona. Gosto de ver como os “furacões” de ira são encarados. Gosto de ver como a soberba cai por terra. Gosto de ver como tudo se acerta.
De vez em quando eles oram, vão à igreja, exercem a fé, ainda que um pouco “social” e religiosa. Há uma tentativa de se praticar o bem aos que são queridos. Chris é um pouco de cada um de nós, afinal, quem vence todos os dias? Quem supera as crises pessoais todos os dias? Quem tenta, ao menos, romper os limites todos os dias?
Quem não tem um Malvo na vida oferecendo-lhe terror? Quem não tem um Golpe Baixo para mantê-lo dentro do equilíbrio? Quem não tem um Jerome na vida pra arrancar-lhe o que quase não tem? Quem não tem um Sr. Omar para desejar-lhe o “descanso eterno”? Ainda que com muito bom humor.
Precisamos de famílias que vivam de acordo com a verdade, que confrontem seus medos e realidade. Famílias que acertem as contas e se amem, ainda que, cada um na sua linguagem de demonstração desse afeto. Precisamos encarar quem somos, olhando nos olhos, todos os dias, o dia todo. Talvez, quem sabe, de alguma maneira, isso nos faça melhor e caminhemos para o futuro glorioso certo de que demos nosso máximo.
Eu não odeio o Chris. Amo!

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O que aprendi com John Stott

Por que Cristo morreu?

Por que Cristo morreu? Quem foi responsável por sua morte? Muitos não vêem problema algum nestas perguntas e, portanto, não têm dificuldade alguma em res­ponder a elas. Para esses, os fatos parecem tão claros como o dia. Jesus não "morreu", dizem; ele foi morto, executado publicamente como um criminoso. Achavam que as doutrinas que ele ensinava eram perigosas, até mesmo subversivas. Os dirigentes ju­daicos ficaram furiosos com sua atitude desrespeitosa para com a lei e com suas reivindicações provocadoras, enquanto os romanos ou­viram dizer que ele se estava proclamando rei dos judeus, e, assim, desafiava a autoridade de César. Para ambos os grupos, Jesus parecia ser um pensador e pregador revolucionário, e alguns o consideravam também como ativista revolucionário. Ele perturbou o status quo tão profundamente que decidiram acabar com ele. De fato, entraram em uma aliança maligna a fim de fazê-lo. No tribunal apresentou-se uma acusação teológica contra ele, blasfêmia. No tribunal romano a acu­sação era política, sedição. Mas quer seu delito tenha sido visto como primariamente contra Deus, quer contra César, o resultado foi o mesmo. Percebiam-no como uma ameaça à lei e à ordem, a qual não podiam tolerar. De modo que o liquidaram. Por que ele morreu? Ostensivamente, ele morreu como um criminoso, mas na realidade, como a vítima de mentes medíocres, e como um mártir de sua própria grandeza.
Um dos aspectos fascinantes que os escritos dos relatos dos Evan­gelhos fazem do julgamento de Jesus é essa mescla de fatores legais e morais. Todos eles indicam que tanto no tribunal judaico como no romano seguiu-se certo procedimento legal. A vitima foi presa, acu­sada e examinada, e chamaram-se testemunhas. Então o juiz deu o seu veredicto e pronunciou a sua sentença. Contudo, os evangelistas também esclarecem que o preso não era culpado das acusações, que as testemunhas eram falsas, e que a sentença de morte foi um hor­rendo erro judicial. Além do mais, o motivo desse erro foi a presença de fatores pessoais e morais que influenciaram a execução da lei. Caifás, sumo sacerdote judaico, e Pilatos, procurador romano, não eram apenas oficiais da igreja e do estado, no cumprimento e execução de seus deveres oficiais; eram seres humanos decaídos e falíveis, levados pelas paixões sombrias que governam a todos nós. Pois nossos motivos são confusos. Podemos ter êxito em preservar um pouco de retidão no desempenho do dever público, mas por trás dessa fachada espreitam emoções violentas e pecaminosas, as quais estão amea­çando explodir. Os evangelistas expõem esses pecados secretos, en­quanto contam a história da prisão, julgamento, sentença e execução de Jesus. É um dos propósitos da sua narrativa, pois o material dos Evangelhos era usado na instrução oral dos convertidos.
Os soldados romanos e Pilatos
Os responsáveis imediatos pela morte de Jesus foram, é claro, os soldados romanos que executaram a sentença. Todavia, nenhum dos quatro evangelistas descreveu o processo de crucificação.
Se tivéssemos de depender exclusivamente dos Evangelhos, não saberíamos o que aconteceu, Outros documentos contemporâneos, porém, nos dizem como era feita a crucificação. Primeiro, o prisioneiro era despido e humilhado publicamente. A seguir era forçado a deitar-se de costas no chão, suas mãos eram pregadas ou atadas ao braço horizontal da cruz (o patibulum), e seus pés ao poste vertical. Então a cruz era erguida e jogada num buraco escavado para ela no chão. Em geral, providenciava-se um pino ou assento rudimentar a fim de receber um pouco do peso do corpo da vítima para que não se rasgasse e caísse. Aí ficava o crucificado pendurado, exposto à intensa dor física, ao ridículo do povo, ao calor do dia e ao frio da noite. A tortura durava vários dias.
Os escritores dos Evangelhos não descrevem o processo de cruci­ficação. Unindo o que eles nos dizem, parece que, segundo um cos­tume romano conhecido, Jesus começou carregando sua própria cruz ao lugar da execução. Supõe-se, contudo, que ele caiu sob o peso dela, pois um homem chamado Simão, natural de Cirene, no Norte da África, que naquele momento entrava na cidade, vindo do campo, foi detido e forçado a levar a cruz de Jesus. Quando chegaram ao "lugar chamado Gólgota (que significa o lugar da Caveira)", ofere­ceram a Jesus vinho misturado com mirra, um gesto de misericórdia cuja finalidade era atenuar a dor. Mas, embora o tivesse provado, segundo Mateus, Jesus se recusou a bebê-lo. A seguir, os quatro evangelistas simplesmente escrevem: "E o crucificaram".1 E é só. Haviam descrito, com alguns detalhes, como os soldados zombaram dele no Pretório (residência do governador): Vestiram-no com um manto de púrpura, colocaram uma coroa de espinhos na sua cabeça e um cetro de caniço na sua mão direita, vendaram-lhe os olhos, cuspiram nele e bateram-lhe na face e deram-lhe na cabeça, ao mesmo tempo que o desafiavam a identificar quem o feria. Também ajoelharam-se na sua frente em zombaria. Os evangelistas, porém, não oferecem detalhes da crucificação; não fazem referência alguma ao martelo, aos pregos, à dor, nem mesmo ao sangue.
Tudo o que nos dizem é: "E o crucificaram". Isto é, os soldados haviam executado o seu horrendo dever. Não há evidência de que tenham tido prazer nele, nem sugestão de terem sido cruéis ou sá­dicos. Estavam apenas obedecendo a uma ordem. Era o seu dever. Fizeram o que tinham de fazer. E o tempo todo, diz-nos Lucas, Jesus continuava a orar em voz alta: "Pai, perdoa-lhes porque não sabem o que fazem" (23:34).
Embora os escritores dos Evangelhos pareçam sugerir que nenhuma culpa tinham os soldados romanos por crucificarem a Jesus (e acres­centam que mais tarde o centurião responsável por eles creu, ou pelo menos quase creu), quanto ao procurador romano que ordenou a crucificação, o caso é bem diferente. "Então Pilatos o entregou para ser crucificado. Tomaram eles, pois, a Jesus. . . Onde o crucificaram" (João 19:16-18). Pilatos era culpado. De fato, a sua culpa encontra-se em nosso credo cristão o qual declara que Jesus foi "crucificado sob Pôncio Pilatos".
Sabe-se que Pilatos foi nomeado procurador (isto é, governador romano) da província fronteiriça da Judéia pelo imperador Tibério e serviu durante dez anos, de cerca de 26 a 36 A.D. Ele adquiriu a fama de hábil administrador, tendo um senso de justiça tipicamente ro­mano. Os judeus, porém, o odiavam porque ele os desprezava. Eles não se esqueciam de seu ato de provocação do início do seu governo quando exibiu os estandartes romanos na própria cidade de Jerusa­lém. Josefo descreve outra de suas loucuras, a saber, que desapropriou dinheiro do templo a fim de construir um aqueduto.2 Muitos acham que foi no motim que se seguiu que ele misturou sangue de certos galileus com os seus sacrifícios (Lucas 13:1). Estas são apenas algumas amostras do seu temperamento esquentado, de sua violência e cruel­dade. De acordo com Filão, o rei Agripa I, numa carta ao imperador Calígula, descreveu Pilatos como: "Um homem de disposição infle­xível, e muito cruel como também obstinado",3 Seu objetivo principal era manter a lei e a ordem, conservar os judeus perturbadores fir­memente sob controle, e, se necessário para esses fins, ser implacável na supressão de qualquer tumulto ou ameaça de motim.
O retrato de Pôncio Pilatos nos Evangelhos se encaixa nessa evi­dência externa. Quando os dirigentes judaicos levaram Jesus a ele, dizendo: "Encontramos este homem pervertendo a nossa nação, ve­dando pagar tributo a César e afirmando ser ele o Cristo, Rei" (Lucas 23:2), Pilatos não pôde deixar de lhes dar atenção. À medida que a sua investigação prossegue, os evangelistas ressaltam dois pontos importantes.
Primeiro, Pilatos estava convicto da inocência de Jesus. Ele obvia­mente ficou impressionado com a nobre conduta, com o domínio próprio e a inocência política do prisioneiro. De forma que ele declarou publicamente três vezes não achar nele culpa alguma. A primeira declaração ele a fez logo depois do amanhecer de sexta-feira quando o Sinédrio lhe levou o caso. Pilatos os ouviu, fez algumas perguntas a Jesus, e depois de uma audiência preliminar anunciou: "Não vejo neste homem crime algum".4
A segunda ocasião foi quando Jesus voltou, depois de ter sido examinado por Herodes. Pilatos disse aos sacerdotes e ao povo: "Apresentastes-me este homem como agitador do povo; mas, tendo-o interrogado na vossa presença, nada verifiquei contra ele dos crimes que o acusais. Nem tampouco Herodes, pois no-lo tornou a enviar. E, pois, claro que nada contra ele se verificou digno de morte."5 A esta altura a multidão gritou: "Crucifica-o! Crucifica-o!" Mas Pilatos respondeu, pela terceira vez: "Que mal fez este? De fato nada achei contra ele para condená-lo à morte".6 Além disso, a convicção pessoal do Procurador acerca da inocência de Jesus foi confirmada pela men­sagem enviada por sua mulher: "Não te envolvas com esse justo; porque hoje, em sonhos, muito sofri por seu respeito" (Mateus 27:19). A insistência repetida de Pilatos sobre a inocência de Jesus é o pano de fundo essencial ao segundo ponto a seu respeito ao qual os evan­gelistas dão ênfase, a saber, suas engenhosas tentativas de evitar ter de tomar um partido. Ele queria evitar sentenciar a Jesus (visto acre­ditar ser ele inocente) e ao mesmo tempo evitar exonerá-lo (visto acreditarem os dirigentes judaicos ser ele culpado). Como poderia Pilatos conseguir conciliar esses fatores irreconciliáveis? Vemo-lo con­torcer-se à medida que tenta soltar a Jesus e pacificar os judeus, isto é, ser justo e injusto simultaneamente. Ele tentou quatro evasões.
Primeira, ao ouvir que Jesus era da Galiléia, e, portanto, estar sob a jurisdição de Herodes, enviou-o ao rei para julgamento, esperando transferir a ele a responsabilidade da decisão. Herodes, porém, de­volveu Jesus sem sentença (Lucas 23:5-12).
Segunda, ele tentou meias-medidas: "Portanto, depois de o casti­gar, soltá-lo-ei" (Lucas 23:16, 22). Ele esperava que a multidão se sa­tisfizesse com algo menos que a penalidade máxima, e que o desejo de sangue do povo fosse saciado ao verem as costas de Jesus laceradas. Foi uma ação mesquinha. Pois se Jesus era inocente, devia ter sido imediatamente solto, não primeiramente açoitado.
Terceira, ele tentou fazer a coisa certa (soltar a Jesus) com o motivo errado (pela escolha da multidão). Lembrando-se do costume que o Procurador tinha de dar anistia de páscoa a um prisioneiro, ele es­perava que o povo escolhesse a Jesus para esse favor. Então ele podia soltá-lo como um ato de clemência em vez de um ato de justiça. Era uma idéia astuta, mas inerentemente vergonhosa, e o povo a frustrou exigindo que o perdão fosse dado a um notório criminoso e assassino, Barrabás.
Quarta, ele tentou protestar sua inocência. Tomando água, lavou as mãos na presença do povo, dizendo: "Estou inocente do sangue deste justo" {Mateus 27:24). E então, antes que suas mãos se secassem, entregou-o para ser crucificado. Como pôde ele incorrer nessa grande culpa imediatamente depois de ter proclamado a inocência de Jesus?
E fácil condenar a Pilatos e passar por alto nosso próprio compor­tamento igualmente tortuoso. Ansiosos por evitar a dor de uma en­trega completa a Cristo, nós também procuramos subterfúgios. Deixamos a decisão para alguém mais, ou optamos por um compro­misso morno, ou procuramos honrar a Jesus pelo motivo errado (como mestre em vez de Senhor), ou até mesmo fazemos uma afirmação pública de lealdade a ele, mas ao mesmo tempo o negamos em nossos corações.
Três expressões na narrativa de Lucas iluminam o que, finalmente, Pilatos fez: "o seu clamor prevaleceu", "Pilatos decidiu atender-lhes o pedido", e "quanto a Jesus, entregou à vontade deles" (Lucas 23:23-25). O clamor deles, pedido deles, vontade deles: a estes Pilatos, em sua fraqueza, capitulou. Ele desejava soltar a Jesus (Lucas 23:20), mas também desejava "contentar a multidão" (Marcos 15:15). A multidão venceu. Por quê? Porque lhe disseram: "Se soltas a este, não és amigo de César; todo aquele que se faz rei é contra César" (João 19:12). A escolha era entre a honra e a ambição, entre o princípio e a conve­niência. Ele já estivera em dificuldades com Tibério César em duas ou três ocasiões prévias. Ele não podia arcar com mais uma.
Claro, Jesus era inocente. Claro, a justiça exigia a sua liberdade. Mas como podia ele patrocinar a inocência e a justiça se, fazendo-o, estaria negando a vontade do povo, desfeiteando os dirigentes da nação e, acima de tudo, provocando um levante, o que o levaria a perder o favor imperial? Sua consciência afogou-se nas altas vozes da racionalização. Ele fez concessões por ser covarde.
O povo judaico e seus sacerdotes
Embora não possamos exonerar a Pilatos, certamente podemos re­conhecer que ele se encontrava em um dilema difícil, e que foram os líderes judaicos que aí o colocaram. Foram eles quem entregaram Jesus a Pilatos para ser julgado, quem o acusaram de reivindicações e ensino subversivos, e quem atiçaram a multidão levando-a a exigir a cruci­ficação. Portanto, como o próprio Jesus disse a Pilatos: "Quem me entregou a ti, maior pecado tem" (João 19:11). Pode ser que, visto ter ele empregado o singular, se referisse ao sumo sacerdote Caifás, mas o Sinédrio todo estava implicado. Deveras, o povo também, como Pedro audazmente lhes disse logo depois do Pentecoste: "Israeli­tas. . . Jesus, a quem vós traístes e negastes perante Pilatos, quando este havia decidido soltá-lo. Vós, porém, negastes o Santo e o Justo e pedistes que vos concedessem um homicida. Dessarte matastes o Autor da vida. . ." (Atos 3:12-15). Parece que as mesmas multidões que haviam recebido a Jesus em Jerusalém no Domingo de Ramos com grande alegria, dentro de cinco dias estavam em altas vozes pedindo o seu sangue. Contudo, a culpa dos dirigentes, por tê-las incitado, era muito maior.
Jesus, desde o início, havia perturbado o estabelecimento judaico. Para começar, ele era irregular. Embora se dissesse Rabi, não havia entrado pela porta certa, nem subido a escada certa. Ele não tinha credenciais, nem autorização apropriada. Além disso, ele havia cha­mado sobre si mesmo a controvérsia por causa do seu comportamento provocante, confraternizando com gente de má fama, festejando em vez de jejuar, e profanando o sábado por meio de curas. Não estando contente com o desrespeito pelas tradições dos anciãos, ele os havia, na realidade, rejeitado como um grupo, e tinha também criticado aos fariseus por exaltarem a tradição, colocando-a acima da Escritura. Eles se importavam mais com os regulamentos do que com as pessoas, dissera ele, mais com a purificação cerimonial do que com a pureza moral, mais com as leis do que com o amor. Ele até mesmo os havia denunciado como "hipócritas", chamando-os de "guias de cegos" e comparando-os a "sepulcros caiados, que por fora se mostram belos, mas interiormente estão cheios de ossos de mortos e de toda imun­dícia" (Mateus 23:27). Estas foram acusações intoleráveis. Pior ainda, ele estava minando a autoridade deles. Ao mesmo tempo ele fazia afirmações ultrajantes acerca de ser senhor do sábado, conhecer a Deus como seu Pai, até mesmo ser igual a Deus. Era blasfêmia. Sim, era isso mesmo, blasfêmia.
De modo que estavam cheios de indignação autojustificada para com Jesus. Sua doutrina era herética. Seu comportamento era uma ofensa à lei sagrada. Ele desviava o povo. E corriam rumores de que ele estava incentivando a deslealdade a César. Assim, o seu ministério devia ser detido antes que causasse maior dano. Eles tinham bons motivos políticos, teológicos e éticos para exigir que ele fosse preso, julgado e condenado. Além disso, quando o levaram ao tribunal e o colocaram sob juramento, mesmo então ele fizera reivindicações blas­femas acerca de si mesmo. Ouviram-no com seus próprios ouvidos. Já não era necessário chamar testemunhas. Ele era blasfemador con­fesso. Ele merecia morrer. Estava absolutamente claro. Ele era cul­pado. As mãos deles estavam limpas.
E contudo, existiam falhas no caso dos dirigentes judaicos. Dei­xando de lado a questão fundamental da veracidade das afirmações de Jesus, havia a questão do motivo. Qual era o motivo fundamental da hostilidade que os sacerdotes sentiam para com Jesus? Era o in­teresse deles a estabilidade política, a verdade doutrinária e a pureza moral? Pilatos não achou que fosse. Ele não se deixou enganar pelas racionalizações dos líderes do povo, especialmente por sua fingida lealdade ao imperador. Como disse H. B. Swete: "Ele detectou, sob o disfarce deles, o vício vulgar da inveja",7 Nas palavras de Mateus: "Porque sabia que por inveja o tinham entregado".8 Não há motivos para questionarmos a avaliação de Pilatos. Ele era um juiz astuto do caráter humano. Além disso, parece que os evangelistas, ao registra­rem o seu juízo, o endossam.
Inveja! Inveja é o lado inverso da moeda chamada vaidade. Nin­guém que não tenha orgulho de si mesmo jamais terá inveja de outros. E os dirigentes judaicos eram orgulhosos; racial, nacional, religiosa e moralmente orgulhosos. Tinham orgulho da longa história do rela­cionamento especial da sua nação com Deus, tinham orgulho de seu próprio papel de líderes da nação, e, acima de tudo, tinham orgulho da sua autoridade. A competição deles com Jesus foi, essencialmente, uma luta pela autoridade. Jesus havia desafiado a autoridade deles, pois possuía um tipo de autoridade que manifestamente lhes faltava. Quando os líderes judaicos foram a Jesus com suas perguntas cap­ciosas: "Com que autoridade fazes estas coisas? ou quem te deu tal autoridade para as fazeres?" (Marcos 11:28), pensavam que o tinham apanhado. Mas, em vez disso, encontraram-se amarrados pela con­trapergunta do Senhor: "O batismo de João era do céu ou dos homens? Respondei-me" (v.30). Estavam encurralados. Não tinham como res­ponder, porque se dissessem "do céu", ele quereria saber por que não creram nele, e se dissessem "dos homens", temiam o povo que acreditava que João era um profeta verdadeiro. De modo que não deram resposta. A tergiversação deles era um sintoma da sua insin­ceridade. Se não conseguiam enfrentar o desafio da autoridade de João, certamente não poderiam enfrentar o desafio da autoridade de Cristo. Ele dizia ter autoridade para ensinar a respeito de Deus, para expelir demônios, para perdoar pecados, para julgar o mundo. Em tudo isto ele era completamente diferente deles, pois a única autoridade que eles conheciam era o apelo a outras autoridades. Além disso, havia uma genuinidade auto-evidente acerca da autoridade de Jesus. Era real, sincera, transparente, divina.
De modo que se sentiam ameaçados por Jesus. Ele minava o pres­tígio deles, o domínio que exerciam sobre as pessoas, a sua própria autoconfiança e seu auto-respeito, enquanto os dele permaneciam intactos. Tinham inveja dele, e, portanto, decidiram eliminá-lo. É interessante que Mateus relate duas tramas invejosas para eliminar a Jesus. A primeira, de Herodes, no início da vida de Jesus, e a outra, dos sacerdotes, no final. Ambos sentiram uma ameaça à sua autori­dade. De modo que ambos procuraram destruir a Jesus.9 Por mais respeitáveis que os argumentos políticos e teológicos dos sacerdotes possam ter sido, foi a inveja que os levou a entregar Jesus a Pilatos para ser destruído.
A mesma paixão maligna influencia nossas atitudes contemporâ­neas para com Jesus. Ele ainda é, como o denominou C. S. Lewis, "um interferidor transcendental".10 Ressentimo-nos de suas intrusões à nossa vida privada, sua exigência de nossa homenagem, sua ex­pectativa de nossa obediência. Por que é que ele não cuida de seus próprios negócios, perguntamos petulantemente, e nos deixa em paz? A essa pergunta ele instantaneamente responde dizendo que nós somos o seu negócio e que jamais nos deixará sozinhos. De modo que nós, também, vemo-lo como um rival ameaçador, que perturba nossa paz, mina nossa autoridade e diminui nosso auto-respeito. Nós também queremos eliminá-lo.
Judas Iscariotes, o traidor
Tendo visto como os sacerdotes entregaram Jesus a Pilatos, e como Pilatos o entregou aos soldados, agora precisamos examinar como, para começar, Judas o entregou aos sacerdotes. Essa entrega é es­pecificamente chamada de "traição". Deveras, a quinta-feira santa será sempre lembrada como a noite em que ele foi traído (1 Coríntios 11:23), e Judas como aquele que o traiu. Esse epitáfio acusador já está preso ao seu nome quando ele é mencionado pela primeira vez nos Evangelhos entre os Doze. Os três evangelistas sinóticos colocam-no em último lugar na lista dos apóstolos.11
Não é incomum alguns expressarem simpatia para com Judas. "Afi­nal", dizem, "se Jesus havia de morrer, alguém tinha de traí-lo. As­sim, por que culpar a Judas? Ele não passou de instrumento da providência, uma vítima da predestinação". Bem, a narrativa bíblica certamente indica que Jesus conhecia de antemão a identidade do seu traidor12 e referiu-se a ele como destinado à destruição para que a Escritura se cumprisse.13 E também verdade que Judas fez o que fez somente depois que Satanás o instigou e entrou nele.14
Entretanto, nada disso exonera a Judas. Ele deve arcar com a res­ponsabilidade do que fez, tendo, sem dúvida, deliberadamente tra­mado suas ações. O fato de sua traição ter sido predita nas Escrituras não significa que ele não fosse um agente livre, assim como as pre­dições do Antigo Testamento acerca da morte de Jesus não significa que ele não tivesse morrido voluntariamente. De forma que Lucas mais tarde referiu-se à sua maldade (Atos 1:18). Por mais fortes ti­vessem sido as influências satânicas sobre ele, deve ter existido uma época na qual ele se expôs a elas. Parece que Jesus claramente o considerou como responsável por suas ações, pois até mesmo no último instante, no cenáculo, fez-lhe um apelo final, mergulhando um pedaço de pão e dando-o a ele (João 13:25-30). Judas, porém, rejeitou o apelo de Jesus, e sua traição parece ainda mais odiosa porque foi uma quebra flagrante da hospitalidade. Nesse aspecto ela cumpre outra Escritura que diz: "Até o meu amigo íntimo, em quem eu confiava, que comia do meu pão, levantou contra mim o calcanhar" (Salmo 41:9). O cinismo último de Judas foi escolher trair o seu Mestre com um beijo, usando esse símbolo da amizade a fim de destruí-la. De modo que Jesus afirmou a culpa de Judas, dizendo: "Ai daquele por intermédio de quem o Filho do homem está sendo traído! Melhor lhe fora não haver nascido!" (Marcos 14:21). Assim, Jesus não apenas o condenou, mas o próprio Judas, no final, condenou-se a si mesmo. Ele reconheceu o seu crime, trair o sangue inocente, devolveu o di­nheiro pelo qual tinha vendido a Jesus, e se suicidou. Sem dúvida, ele estava mais preso pelo remorso do que pelo arrependimento, mas, finalmente, confessou sua culpa.
O motivo do crime de Judas há muito que ocupa a curiosidade e a engenhosidade dos estudiosos. Alguns estão convictos de que ele era um zelote15 que se tinha unido a Jesus e a seus seguidores na crença de que o movimento deles era de libertação nacional, mas que, fi­nalmente, o traiu por causa de desilusão política ou como um truque a fim de que Jesus fosse obrigado a lutar. Os que tentam fazer uma reconstrução desse tipo pensam que encontram evidência confirma­tória no nome "Iscariotes", embora todos admitam que é um nome obscuro. Em geral acham que o nome indica a origem de Judas como "um homem de Queriote", uma cidade do Sul da Judéia, a qual é mencionada em Josué 15:25. Mas os que pensam que Judas foi um zelote sugerem que "Iscariotes" se relaciona com a palavra "sicário", um assassino (do latim sica e do grego sikarion, "adaga"). Josefo men­ciona os sicários.
Inflamados por um nacionalismo judaico fanático, os sicários es­tavam decididos a recuperar a independência do seu país do domínio colonial romano, e para esse fim lançavam mão até mesmo do assas­sínio de seus inimigos políticos, a quem desprezavam como infor­mantes. O Novo Testamento refere-se a eles apenas uma vez, a saber, quando o comandante romano que havia salvo a Paulo de ser linchado em Jerusalém perguntou-lhe: "Não és tu, porventura, o egípcio que há tempos sublevou e conduziu ao deserto quatro mil sicários?" (Atos 21:38).
Outros comentaristas consideram a base dessa reconstrução de­masiadamente fraca, e atribuem a deserção de Judas a falha moral em vez de motivação política, isto é, a ganância mencionada pelo quarto evangelista. Ele nos diz que Judas era o tesoureiro do grupo apos­tólico, tendo recebido o cuidado da bolsa comum. A ocasião do co­mentário de João foi a unção de Jesus por Maria de Betânia. Ela trouxe um vaso de alabastro contendo um perfume muito caro (nardo puro, segundo Marcos e João), o qual derramou sobre ele. Jesus estava reclinado à mesa, e a casa se encheu de um fragrante perfume. Foi um grande gesto de devoção quase exagerada, ao qual Jesus mais tarde chama de boa ação. Mas, alguns dos presentes (dos quais judas foi o porta-voz), reagiram de modo totalmente diferente. Observando-a com incredulidade, eles fungaram de indignação autojustificada. "Que desperdício!" disseram. "Que extravagância maligna! O per­fume podia ser vendido por um preço equivalente a mais de um ano de salários, e o dinheiro dado aos pobres." O comentário deles, po­rém, era insincero, como João prossegue a dizer. Judas não disse isso porque se importava com os pobres mas porque era ladrão; como guardador da bolsa, ele se servia do dinheiro que nela era colocado. Deveras, tendo testemunhado e denunciado o que viu como o des­perdício irresponsável de Maria, ele parece ter ido diretamente aos sacerdotes a fim de recuperar um pouco da perda. O que estão dis­postos a me dar se eu o entregar a vocês? perguntou ele. Sem dúvida alguma, então começaram a pechinchar, e no fim concordaram em dar-lhe 30 moedas de prata, o preço de resgate de um escravo comum. Os evangelistas, com o seu senso de alto drama, deliberadamente contrastam Maria com Judas, a generosidade desprendida daquela e a pechincha friamente calculada deste. Acerca das outras paixões som­brias que estariam queimando o coração de Judas só podemos con­jeturar, mas João insiste em que foi a ganância que finalmente o venceu. Inflamado pelo desperdício dos salários de um ano, ele foi e vendeu a Jesus por menos de um terço dessa quantia.16
Não é por acaso que Jesus nos diz que nos acautelemos de toda a cobiça, ou que Paulo declara que o amor do dinheiro é raiz de todos os tipos de males.17 Na busca do ganho material os seres humanos têm descido às profundezas da depravação. Os magistrados têm pervertido a justiça por subornos, como os juizes de Israel de quem Amós escreveu: "Vendem o justo por dinheiro, e condenam o necessitado por causa de um par de sandálias" (2:6). Os políticos têm usado o seu poder para a concessão de contratos ao que faz uma proposta melhor, e os espiões têm descido ao ponto de vender ao inimigo os segredos de seu país. Os negociantes têm feito transações desonestas, pondo em perigo a prosperidade de outros a fim de ganhar mais. Até mesmo professores supostamente espirituais têm transformado a re­ligião em uma empresa comercial, e alguns ainda hoje o fazem, de modo que o candidato ao pastorado recebe a advertência: não seja amante do dinheiro.18 O linguajar de todas essas pessoas é o mesmo que o de Judas: dependendo do que me derem, eu o entregarei a vocês. Pois todo mundo tem o seu preço, assevera O cínico, desde o assassino contratado, disposto a pechinchar a vida de alguém, ao mais baixo oficial que atrasa a emissão de um documento ou um passaporte enquanto não receber o seu suborno. Judas não foi ex­ceção. Jesus dissera que é impossível servir a Deus e ao dinheiro. Judas escolheu o dinheiro. Muitos outros têm feito o mesmo.
Os pecados deles e os nossos
Examinamos os três indivíduos — Pilatos, Caifás e Judas — a quem os evangelistas apõem culpa maior pela crucificação de Jesus, e seus associados: os sacerdotes, o povo e os soldados. Acerca de cada pessoa ou grupo usa-se o mesmo verbo: paradidomi, traduzido por "entregar" ou "trair". Jesus havia predito que seria entregue nas mãos dos ho­mens, ou "entregue para ser crucificado".19 E os evangelistas, ao contarem sua história, demonstram que a predição de Jesus foi ver­dadeira. Primeiro, Judas o entregou aos sacerdotes (por causa da ganância). A seguir, os sacerdotes o entregaram a Pilatos (por causa da inveja). Então Pilatos o entregou aos soldados (por causa da co­vardia), e eles o crucificaram.20
Nossa reação instintiva a esse mal acumulado é dar eco à pergunta espantada de Pilatos, quando a multidão gritou pedindo o sangue de Jesus: "Que mal fez ele?" (Mateus 27:23). Pilatos, porém, não recebeu uma resposta lógica. A multidão histérica clamava cada vez mais alto: "Crucifica-o! Crucifica-o!" Mas por quê?
É natural encontrarmos desculpas para eles, pois vemos a nós mes­mos neles e gostaríamos de ser capazes de nos desculparmos. De­veras, havia algumas circunstâncias mitigantes. Como o próprio Jesus disse ao orar pelo perdão dos soldados que o estavam crucificando: "pois não sabem o que fazem". Da mesma forma, Pedro disse a uma multidão de judeus em Jerusalém: "Eu sei que o fizestes por igno­rância, como também as vossas autoridades." Paulo acrescentou que, se "os poderosos deste século" tivessem compreendido, "jamais te­riam crucificado o Senhor da glória."21 Contudo, sabiam o suficiente para ser culpados, aceitar o fato de sua culpa e ser condenados por suas ações. Não estavam eles reivindicando responsabilidade total quando clamaram: "Caia sobre nós o seu sangue, e sobre nossos filhos"?22 Pedro falou com toda a franqueza no dia de Pentecoste: "Esteja absolutamente certa, pois, toda a casa de Israel de que a este Jesus que vós crucificastes, Deus o fez Senhor e Cristo." Além do mais, longe de discordar do seu veredicto, o coração dos ouvintes de Pedro se compungiu e perguntaram o que deviam fazer (Atos 2:36,37). Es­têvão foi ainda mais direto em seu discurso ao Sinédrio, o qual o levou ao martírio. Chamou o Concilio de "homens de dura cerviz e incir­cuncisos de coração e de ouvidos, vós sempre resistis ao Espírito Santo, assim como o fizeram vossos pais também vós o fazeis." Pois seus pais haviam perseguido os profetas e matado aqueles que pre­disseram a vinda do Messias, e agora tinham traído e assassinado o próprio Messias (Atos 7:51-52). Paulo, mais tarde, usou linguagem parecida ao escrever aos tessalonicenses acerca da oposição judaica do seu tempo ao evangelho: eles "mataram o Senhor Jesus e os pro­fetas, como também nos perseguiram". Por estarem tentando con­servar os gentios afastados da salvação, o juízo viria sobre eles (1 Tessalonicenses 2:14-16).
Culpar o povo judeu pela crucificação de Jesus hoje é extremamente fora de moda. Deveras, se a crucificação for usada como uma desculpa para matá-los e persegui-los (como aconteceu no passado), ou para propagar o anti-semitismo, é absolutamente indefensável. O modo de evitar o preconceito anti-semítico, contudo, não é fingir que os judeus são inocentes, mas, tendo admitido a sua culpa, acrescentar que outros partilharam dela. É assim que os apóstolos viram a situa­ção. Herodes e Pilatos, gentios e judeus, disseram eles, tinham juntos "conspirado" contra Jesus (Atos 4:27). Mais importante ainda, nós mesmos também somos culpados. Se estivéssemos no lugar deles, teríamos feito exatamente o que fizeram. Deveras, nós o fizemos. Pois sempre que nos desviamos de Cristo, estamos "crucificando" para nós mesmos o Filho de Deus, e o "expondo à ignomínia" (Hebreus 6:6). Nós também sacrificamos Jesus à nossa ganância como Judas, à nossa inveja como os sacerdotes, à nossa ambição como Pilatos. "Es­tavas lá quando crucificaram o meu Senhor?" pergunta o cântico es­piritual. E devemos responder: "Sim, eu estava lá." Não apenas como espectadores, mas também como participantes, participantes culpa­dos, tramando, traindo, pechinchando e entregando-o para ser cru­cificado. Como Pilatos, podemos tentar tirar de nossas mãos a responsabilidade por meio da água. Mas nossa tentativa será tão fútil quanto foi a dele. Pois há sangue em nossas mãos. Antes que pos­samos começar a ver a cruz como algo feito para nós (que nos leva à fé e à adoração), temos de vê-la como algo feito por nós (que nos leva ao arrependimento). Deveras, "somente o homem que está preparado para aceitar sua parcela de culpa da cruz", escreve Canon Peter Green, "pode reivindicar parte na sua graça".23
A resposta que até agora demos à pergunta: "Por que Cristo mor­reu"? procurou refletir o modo pelo qual os escritores do evangelho contam a sua história. Eles indicam a corrente de responsabilidade (de Judas aos sacerdotes, dos sacerdotes a Pilatos, de Pilatos aos soldados), e, pelo menos, sugerem que a ganância, a inveja e o temor, os quais instigaram o comportamento dos envolvidos, também ins­tigam o nosso. Contudo, esse não é o relato final dos evangelistas. Omiti uma evidência vital que eles apresentam. É esta: embora Jesus tivesse sido levado à morte pelos pecados humanos, ele não morreu como mártir. Pelo contrário, ele foi à cruz espontaneamente, até mesmo deliberadamente. Desde o começo do seu ministério público, ele se consagrou a esse destino.
No seu batismo, ele se identificou com os pecadores (como mais tarde o faria por completo sobre a cruz), e em sua tentação ele se recusou a desviar-se do caminho da cruz. Ele predisse muitas vezes os seus sofrimentos e morte, como vimos no capítulo anterior, e, decididamente, partiu para Jerusalém a fim de morrer aí. O uso cons­tante que ele faz da palavra "deve" em relação à sua morte expressa não uma compulsão exterior, mas sua resolução interior de cumprir o que a seu respeito havia sido escrito. "O Bom Pastor dá a sua vida pelas ovelhas", disse ele. Então, deixando de lado a metáfora, "eu dou a minha vida. . . Ninguém a tira de mim; pelo contrário, eu espontaneamente a dou" (João 10:11, 17,18).
Além disso, quando os apóstolos resolveram escrever acerca da natureza voluntária da morte de Jesus, usaram várias vezes o mesmo verbo (paradidomi) o qual os evangelistas empregaram com relação ao ser ele entregue à morte por outros. Assim, Paulo pôde escrever que o "Filho de Deus, que me amou e a si mesmo se entregou (paradontos) por mim".24 A afirmação do apóstolo talvez tenha sido um eco de Isaías 53:12, que diz que ele "derramou (pareáothe) a sua alma na morte". Paulo também usou o mesmo verbo ao olhar para a auto-entrega voluntária do Filho à entrega do Pai. Por exemplo, "aquele que não poupou ao seu próprio Filho, antes, por todos nós o entregou (paredoken), porventura não nos dará graciosamente com ele todas as coisas?"25 Octavius Winslow resumiu o assunto com uma bela afir­mativa: "Quem entregou Jesus para morrer? Não foi Judas, por dinheiro; não foi Pilatos, por temor; não foram os judeus, por inveja — mas o Pai, por amor!"26
É essencial que conservemos juntos estes dois modos complemen­tares de olhar para a cruz. No nível humano, Judas o entregou aos sacerdotes, os quais o entregaram a Pilatos, que o entregou aos sol­dados, os quais o crucificaram. Mas, no nível divino, o Pai o entregou, e ele se entregou a si mesmo para morrer por nós. A medida que encaramos a cruz, pois, podemos dizer a nós mesmos: "Eu o matei, meus pecados o enviaram à cruz"; e: "ele se matou, seu amor o levou à cruz". O apóstolo Pedro uniu as duas verdades em sua admirável afirmativa do dia de Pentecoste: "Sendo este entregue pelo deter­minado desígnio e presciência de Deus, vós o matastes, crucificando-o por mão de iníquos."27 Assim, Pedro atribuiu a morte de Jesus simultaneamente ao plano de Deus e à maldade dos homens. Pois a cruz, que é uma exposição da maldade humana, como temos consi­derado em particular neste capítulo, é ao mesmo tempo a revelação do propósito divino de vencer a maldade humana assim exposta.
Volto, ao terminar este capítulo, à pergunta com a qual o comecei: por que Jesus Cristo morreu? Minha primeira resposta foi que ele não morreu; ele foi morto. Agora, porém, devo equilibrar essa resposta com o seu oposto. Ele não foi morto, ele morreu, entregando-se vo­luntariamente para fazer a vontade do Pai.
A fim de discernir o que era a vontade do Pai, temos de examinar novamente os mesmos eventos, desta vez olhando abaixo da super­fície.
                                                                                                                            JOHN STOTT

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